terça-feira, 20 de outubro de 2009

José Saramago e um novo olhar


Quem ganha um prémio Nobel tem que ser uma pessoa inteligente.
Ponto 1. Saramago é um Nobel, logo é inteligente.
Quem lê a letra da Bíblia não pode deixar de levantar questões que podem parecer absurdas. Por exemplo, a velha questão da genealogia da humanidade. Na letra, repito, Adão é o marido de Eva.
Deste casamento, nascem dois rapazes Abel e Caim. De quem são filhos os netos de Adão e Eva? Só podem ter nascido de uma união que hoje não é aceitável, da ligação sexual do filho Caim com a sua mãe Eva, pois entretanto Abel tinha sido despachado pelo irmão. Em termos científicos e ainda que ao Deus Criador tudo seja possível na douta opinião dos biblistas, relata-se que Josué terá mandado parar o Sol para ter tempo de aviar uns filisteus ou gente parecida com quem se tinha engalfinhado militarmente. Obviamente, não se pode mandar parar aquilo que parado está. Se tivesse mandado parar a Terra, ainda se compreendia e o efeito seria o mesmo. Mas não. Mandou parar o que estava parado.
Ponto 2. A Bíblia, e sobretudo alguns livros do Antigo Testamento, tomada no seu sentido literal contém um conjunto de disparates facilmente reconhecidos.
Saramago tem razão. Quem lê a Bíblia como um manual, como quem lê um livro de instruções sobre a forma de montar um equipamento, facilmente se vê não ser fiável e contendo um chorrilho de asneiras que só por cegueira não se detectam.
Saramago sabe isso certamente, a Bíblia não se lê à letra, mas também sabe e muita gente sabe que há quem o faça, leitura à letra. Saramago quis pôr-se no lugar de alguém que vai ler à letra e então só pode concluir aquilo que o nobelizado concluiu. Não é a primeira vez que Saramago se põe num papel de contraditório, advogado do diabo, embora ele também não deva acreditar nele, e leva isso até ao absurdo.
Quem sou eu para defender Saramago, mas gostaria de deixar uma outra versão para esta polémica. Saramago considera-se um ateu e assumiu o seu ateísmo de uma forma consciente e certamente de uma forma mais ponderada que a maior parte das pessoas ponderou a sua religiosidade ou a sua adesão à quadrilha. Continuemos a pensar que Saramago é inteligente. Velhice não significa ser decrépito.
Saramago no seu ateísmo considera que as religiões são um perigo para a estabilidade da humanidade. Contem-se as guerras que as religiões monoteístas, cristianismo, judaísmo e islamismo têm gerado e continuarão a gerar. De o cristianismo está mais modesto no furor religioso, os islâmicos estão a ganhar uma dimensão e um crescimento fantásticos. Este crescimento, em parte, é apoiado por formas de violência que nada têm a ver com a tolerância que o ateísmo ou religiões politeístas vivem.
Quem se lembra dos versos satânicos de Salman Rushdie que lhe mereceram a condenação à morte, poderá ver nesta posição de Saramago uma posição anti-intolerância religiosa e dar um grande sinal para a comunidade internacional.
Se fosse eu a dizer aquilo ninguém me ligava patavina e só poderia arranjar uma guerrinha com os meus vizinhos apostólicos romanos. Sendo um Nobel a dizê-lo tem um impacto enorme. Imaginemos o grande chefe espiritual dos xiitas iranianos a pensar que os ocidentais cristão estão mesmo marados, então deixam um safardana gozar o livro dos livros deles e nada lhe acontece? Se aquilo acontecesse com o Corão, enforcá-lo-íamos a toda a hora dos dias todos até que Alá desça em carro de fogo sobre uma montanha aqui da zona. Mas para outros pode passar pela cabeça que, afinal um Deus tão poderoso como o dos cristãos, que é quase tão bom como o nosso, não matou o Nobel Saramago. (Sabemos que Saramago não vai andar por aqui mais duzentos anos e a sua morte nos próximos cinquenta não pode ser encarado como um castigo do Deus agora ultrajado). Voltando aos islâmicos e aos fundamentalistas fica a forma saramaguiana de defrontar o livro que não Deus (se não existe, Saramago não o pode combater). Logo, o Corão também pode ser levado sem ser à letra. O que foi dito sobre a Bíblia pode ser dito em relação a outros livros como, por exemplo, o Corão.
Foi outra forma de olhar.

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